Análise da nova edição pensando na construção dos cards.
Olá pessoal, aproveito a chegada da nova edição para falar um pouco mais de design. Como sempre, espero motivar esse olhar diferente sobre as cartas e as edições.
- Núcleo de design
Seguindo o design da edição de Amonkhet, Hora da Devastação (HOU) é um design top-down da cultura egípcia e top-down do vilão Nicol Bolas. Isso quer dizer que a construção da edição partiu desses conceitos, e os detalhes do seu design, como mecânicas e sinergias, foram feitos de forma a refletir a essência do egito e de Nicol Bolas.
Mas ao contrário de Amonkhet, que foi principalmente focado na metade egípcia, HOU foca na metade Nicol Bolas. A edição traz a sensação de estarmos assistindo a um filme de catástrofe com a destruição sendo orquestrada pelo dragão e o egito sendo basicamente o cenário a ser destruído. Esta é a edição em que finalmente temos contato direto com o maior vilão da história do Magic. Em HOU, toda a dissonância gerada pelo cenário de Amonkhet se dissolve, trazendo à superfície a verdadeira face dos perigos a que essa sociedade esteve submetida.
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Nicol Bolas é um dos primeiros personagens da história do Magic, e aparece pela primeira vez como um dos 5 dragões anciãos da edição de Legends, uma das primeiras edições lançadas (sétima edição e terceira como expansão, sem considerar A, B, U e R). Desde então, Nicol Bolas apareceu como vilão em muitos arcos, como nas histórias de Espiral Temporal, Fragmentos de Alara e Khans de Tarkir.
No artigo sobre Amonkhet, falei a respeito das cinco qualidades do dragão e como elas se refletem na arquitetura da edição: cruel, manipulador, inteligente, ancião e poderoso. Ele domina muito as magias azul, preta e vermelha, e isso se traduz na edição de HOU com diversos designs feitos em cima das três cores.
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Aprofundando no cenário da edição, vemos que as cartas contam uma história que acontece em 5 atos, muito bem representados pelas 5 cartas de lore da edição, que formam um ciclo de cartas raras, as “horas”. Na
Hora da Revelacao, o momento da profecia, o segundo sol se alinha com os chifres e o portão para o além é aberto, a destruição começa. Na
Hora da Gloria, o deus escorpião aparece e mata os outros deuses (menos Hazoret e Bontu, que fogem) na frente da população.
Hora da Promessa, o deus gafanhoto aparece e destrói a proteção da Hekma, deixando a cidade de Naktamun vulnerável aos desertos externos. Na
Hora da Eternidade, o deus escaravelho surge com o grande exército dos eternos (curiosidade: a carta é um bom exemplo de color bend, que é basicamente forçar um pouco o que uma cor pode fazer pra efeitos de design local). Finalmente, na
Hora da Devastacao, o próprio Nicol Bolas surge e trava sua injusta luta contra os sentinelas. E em todas essas horas, a destruição toma conta do plano.
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Mark Rosewater comenta que no design de Ascensão das Trevas eles cometeram o erro de focar demais no sofrimento dos humanos e não deram a devida atenção aos monstros legais que causavam esse sofrimento (não acho isso um erro, o próprio sofrimento pode ser um monstro tão legal quanto um monstro literal), então para HOU eles focaram em mostrar a ameaça e usaram o espaço dos humanos para retratar sua motivação de contra-atacar. Vemos isso nas cartas, e eu acho essa abordagem ainda mais sinistra, pois vemos de perto o sentimento de esperança de indivíduos que sabemos que vão ser devastados no fim.
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Todo esse cenário percorre os três objetivos de Nicol Bolas: 1) Revelar e testar o exército dos eternos. No fim, toda a história dos testes dos deuses de Amonkhet era um processo seletivo de ótimos guerreiros pra compor o exército de zumbis que ele estava montando. Além de pegar os melhores dos melhores, ele também revestiu cada um com uma armadura de lazotep, um minério azul mágico de Amonkhet inspirado no lápis-lazuli (por isso os eternos são assim, azuis). 2) Destruir a cidade de Naktamun. 3) Derrotar os sentinelas. Isso foi uma coisa muito aguardada pelos fãs e é legal que acontece tão solidamente. Essa derrota é detalhada no ciclo incomum que mostra a derrota de cada um dos planeswalkers (e uns flavor texts muito bons, pegando bem na ferida deles).
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Uma coisa bem interessante que o Mark Rosewater fez enquanto explicava o design de HOU foi dar uma aula a respeito de como se fazer edições menores. A ideia é que a edição menor, que é sequência da maior (como HOU é sequência de Amonkhet), tem que dar continuidade ao cenário montado pela primeira edição, mantendo o design base do bloco, ao mesmo tempo em que tem o papel de trazer uma nova sensação, conseguindo se destacar como algo que tem uma essência própria (e não apenas uma continuação da edição anterior). Ele comenta seis pontos que foram seguidos em HOU. 1) Encontre a intersecção: a junção de egito com Nicol Bolas já facilita esse ponto, pois os dois possuem muito clima em comum, como a severidade do cenário, a ordem hierárquica e o simbolismo. Nas mecânicas, eles se apoiaram nos marcadores -1/-1, nas múmias e nos desertos. 2) Entorte seus temas: aqui ele exemplifica com as novas faces dadas às mecânicas de embalsamar (com a nova eternizar) e exaurir (expandindo além do ataque). 3) Continue mecânicas neutras: é o caso de reciclar e consequências. 4) Continue os tropos: tropos são mais ou menos arquétipos criativos conhecidos, espécies de clichês, mas sem a conotação pejorativa. No caso de Amonkhet e HOU são por exemplo monumentos, camelos, gatos, escaravelhos, etc. Em HOU, todos estão mais inseridos nesse cenário de devastação. É uma ideia de pegar as coisas mais icônicas e mantê-las. 5) Use teasers: Aqui, Mark Rosewater comenta sobre as cartas que anunciam a existência de cartas da próxima edição, no caso o Portão para o Além anunciando a Dádiva do Faraó-Deus. Também tem os três deuses desaparecidos e o novo Nicol Bolas. Mas a ideia se generaliza pra qualquer forma de se anunciar elementos que virão. 6) Considere a perspectiva: Em Amonkhet, estávamos do lado dos Sentinelas conhecendo o plano, tentando desvendar o esquema de Nicol Bolas. Agora, em HOU, vemos a perspectiva do dragão, comandamos os eternos e a destruição da cidade. As cartas e as mecânicas nos dão essa sensação, na maior parte do tempo. Isso adiciona muito para a mudança de tom que traz originalidade para HOU.
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- Mecânicas
Afflict – Chamada de “unstoppable” no começo do design, é uma habilidade dos eternos e traz essa sensação de que é inútil tentar impedi-los. A habilidade realmente funciona dando essa sensação, uma escolha de minimizar danos é sempre aflitiva de se tomar. É restrita às três cores de Nicol Bolas, pois é uma habilidade dos próprios eternos, ao contrário de eternizar, que pode ser sobre alguém que não está do lado dele ainda.
Exaurir – A habilidade continua nessa edição, mas agora tem outras dimensões. Vemos várias cartas ativando exaurir sem precisar atacar, explorando melhor o espaço de design, inclusive o ciclo dos últimos esforços dos deuses é uma forma de colocar a habilidade em uma mágica, exaurindo seus terrenos.
Marcadores -1/-1 – Essa também é uma sinergia que continua e vale relembrar que os marcadores são usados como uma forma de representar a crueldade de Nicol Bolas e de todo o cenário do plano de Amonkhet, tornando até o jogo sofrido, com as criaturas machucadas e cansadas, ao invés de fortalecidas com marcadores +1/+1.
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Desertos – Como dito, os desertos foram mais usados em HOU, inclusive com a adição de dois ciclos de desertos coloridos. Acho que eles estão experimentando ousar mais com essa ideia de tribal de cartas diferentes, vejo esse tema dos desertos mecanicamente como uma expansão da ideia desenvolvida com os portões em Retorno à Ravnica, em termos da relevância dos efeitos. Sei que é algo focado no formato limitado, mas acho bem possível que a inclusão do tema dos desertos seja considerável no standard com a
Hidra de Ramunap, por exemplo (mas pensando bem, os portões também chegaram a jogar standard com o deck de
Fim do Labirinto que, de certa forma, era um tribal de portões). O design do ciclo de desertos dos monumentos foi muito bom pra mostrar a transformação da cidade (além de ser um ciclo que faz referência a outro; acho muito legal o potencial dos ciclos de ressaltar as cartas, nós gostamos de ver, ter e memorizar os ciclos).
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Eternizar – É a mesma coisa que embalsamar, mas a ficha se torna preta ao invés de branca e é sempre 4/4, e não o poder e a resistência originais da criatura. A mudança de cor se refere ao caráter dos eternos, que são servos assassinos ao invés de servos trabalhadores. A mudança para o poder e a resistência faz com que as criaturas sempre fiquem mais fortes (não há criaturas com eternizar com poder ou resistência maior ou igual a 4), representando a superioridade do exército dos eternos. É interessante notar que fixar o poder e a resistência abre espaço de design para outras cartas na edição, afetando mágicas de dano, status e habilidades das criaturas (que devem levar em conta se vão matar ou não ou bloquear ou não uma ficha de eterno). É interessante notar como a habilidade foi usada, muitas vezes com triggers levando em conta o poder da criatura, de forma que seu impacto seja maior ao retornar como eterna, acho isso um design bem rico.
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Deuses – Os três novos deuses preenchem vários espaços no design da edição, sendo monstros centrais no cenário de destruição, sendo esperados por quem conhecia o lore, pelos jogadores de commander, participando de várias cenas icônicas e com isso de várias cartas da edição, etc. Sua imortalidade aparece de forma diferente, com eles se regenerando do pó ao serem destruídos. Nas cartas, vemos essa diferença representada mecanicamente, com eles voltando pra mão ao invés de serem indestrutíveis. Achei bem montado e bom por expandir um pouco mais a identidade dos deuses no Magic. Acho elegante isso de uma criatura lendária não ter um nome próprio, pra mim tem uma aura de entidade, uma coisa enigmática e respeitável. As cores dos deuses são as 3 combinações das cores do Nicol Bolas.
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Reciclar – Reciclar continuou e eu gostei da maneira como estão viabilizando novos focos da habilidade de reciclar. HOU continua essa sinergia de Amonkhet com cartas que se importam e se beneficiam do fato de reciclarmos cartas. Esse tipo de sinergia que é uma boa forma de aproveitar toda essa modularidade do jogo, cada novo elemento pode interagir e dar uma nova jogabilidade às estruturas básicas que o Magic já tem. Um exemplo simples é esse de você inventar uma keyword, como “reciclar = descarte este card: compre um card”, e então criar condições como “toda vez que você reciclar um card”, “para cada card com reciclar em seu cemitério” ou “procure em seu grimório por um card com reciclar”.
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Consequências – Essas escolhas de cores são coisas que eu gosto de ficar observando, em Amonkhet tem uma split em cada cor e uma em cada combinação de cores amigas nas raras, as combinações de cores inimigas são incomuns. Agora eles completaram trazendo as cores inimigas nas raras e as amigas nas incomuns. Isso também significa que sobrou muito espaço pra trabalhar essa habilidade em monocolor.
Terrenos básicos – Também considero como uma forma de ambientar a autenticidade da edição menor essa ideia de recriar as artes dos terrenos básicos com o novo tom. Pra mim essa arte diz muito a respeito da atmosfera da edição e deve sempre ser usada com esse propósito em mente. Por isso sou a favor de todas as edições terem terrenos básicos, principalmente agora com os blocos de duas edições.
- Meus comentários de algumas cartas:
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Servos Obedientes: Aqui vemos outra forma de fazer referência à outra edição, promovendo tanto a proximidade quanto a diferença entre as duas. Essa carta em conjunto com Aqueles que Servem, de Amonkhet, passa a ideia da constância da servidão dos embalsamados, que continuam fazendo o serviço mesmo durante a devastação. Mas a nova versão é equipada pra bloquear eternos, então eu imagino um monte de múmias entrando na frente e atrapalhando o grande exército a passar (lembrei do Espreitador do Cume, do bloco de Khans de Tarkir, que foi a única coisa do plano que não mudou com o destino sendo reescrito).
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Licao Tragica: Nossa, essa é a carta mais gore que eu já vi, a arte e o flavor text são bem terríveis, pra mim é impossível apreciar a carta sem uma expressão de desconforto. Eu queria que o efeito ressonasse mais com a sensação que a carta transmite, que não tem nada a ver com comprar carta, é puro luto e horror.
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Areias Infinitas: Gostei muito que uma carta assim foi feita, quando eu penso em deserto é essa a imagem que eu vejo, pra mim ela captura a essência real de um deserto. Uma combinação perfeita de nome, arte e flavor. O efeito também é um recurso extra que é legal de se ter em um mesão, então a carta também é útil, não é só beleza.
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Castigadora do Chicote da Ruina: Cito essa carta porque eu brisei em tentar imaginar como o efeito dela poderia ser mais legal. Eu imaginei uma criatura que bate o chicote envenenado em alguém e depois o indivíduo vai morrendo com o veneno. Pensei em trocar a segunda habilidade (que é meio forçada, porque ela não precisa morrer pra matar quem ela chicoteou) por algo como “no início de sua etapa final, você pode colocar um marcador -1/-1 na criatura alvo com um marcador -1/-1”.
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Eterno Ammit: Gostei dessa carta porque achei ela pura aflição mesmo, pra mim é a carta que mais representa o horror de lutar com os eternos. Você tem que tentar jogar mágicas rápido, pra enfraquecer o bicho, pra quem sabe trocar no bloqueio. Se bloquear, toma dano ainda assim, se não bloquear, toma dano e renova o bicho. Isso faz com que a carta gere uma rotina, um mini jogo, só pra ela; pra mim isso é o ápice no design de uma ameaça. Além do bônus de ser crocodilo, zumbi e demônio, na arte também parece grande, lento e incansável, ou seja, a coisa perfeita pra te perseguir em um pesadelo. Curiosidade: eu não sabia, mas Ammit é uma criatura/deusa muito bizarra da mitologia egípcia que devora corações.
Por hoje é só, pessoal; recomendo a coluna Making Magic do Mark Rosewater, que contém vários detalhes e comentários dele sobre o design no Magic. É lá que eu aprendo sobre como as coisas foram feitas por eles. Até a próxima!