“Isso é hoje?”
De repente, um lapso de memória; um momento que levou uma eternidade, como se ela tivesse apagado por alguns instantes.
“Beatrice? Beatrice?”
Ela despertou do seu transe, espantada como se tivesse sido acordada naquele exato momento. Mas não estava dormindo, estavam de pé, no meio da rua do Estanho, Ravnica, em meio a uma multidão que transitava, vivendo uma vida normal.
“Por um momento, achei que estivesse dormindo em pé.”
Foi quando ela se deu conta da presença dele ao seu lado. Ele olhava para ela com aquele sorriso debochado e olhos de menino: Valerius, um elfo de cabelo curto negro, pele escura e, ao contrário da maioria dos elfos de Ravnica, era baixinho,, pelo menos para o padrão ravnicano. Portava em suas roupas as cores do Conclave Selesnya: branco e verde com tons dourados. Já ela era totalmente o oposto: humana de cabelos longos, ondulados e pretos; a pele era clara com algumas sardas no rosto, os olhos eram cor de mel, mas se escondiam sob o par de óculos que utilizava - mesmo com as constantes insistências do Conluio para que fizesse um enxerto de olhos de águia, Beatrice se recusava. Ela dizia que seus defeitos a faziam única e enquanto os tivesse, saberia a diferença entre ela e seus projetos.
Beatrice trabalhava como biomante para o Conluio Simic, um trabalho extremamente cansativo, com poucos dias de folga durante o mês, porém o salário era bom e ela não podia recusar. Era a melhor no que fazia, pois suas espécimes possuíam uma taxa de sobrevivência de 40%, muito acima da média entre outros biomantes, o que gerava muita inveja e comentários maldosos entre os pesquisadores.
“Desculpe-me, por um momento acho que me distraí”, ela respondeu um tanto encabulada.
“Como sempre, você com a cabeça nas nuvens. Vamos, estamos atrasados para o almoço,”
Raramente Valerius perdia seu bom humor, o que em diversas situações, deixava Beatrice extremamente irritada. Era quase impossível tirar aquele sorriso bobo e debochado de seu rosto, mesmo em situações sérias. Eles caminhavam pela rua do Estanho, uma das ruas mais movimentadas do centro ravnicano, com os melhores comércios também; praticamente, encontrava-se de tudo aqui. Mas naquela tarde não estavam procurando por peças exóticas ou objetos de procedência duvidosa, não, naquela tarde seu destino era um lugar totalmente diferente…
“Finalmente chegamos! Bem-vinda à Estalagem do Macaco Caolho. Estou dizendo, aqui servem o melhor lanche de toda Ravnica com direito à batatas fritas de verdade, não aquela porcaria que se vende no McMizzet.”
Ela parou por um instante, observando o lugar. Era aconchegante com bancos estofados, preparados para dois. Atrás do balcão de bebidas havia uma estátua de uma macaco empalhado, usando um tapa-olho. O local era gerenciado por Tork, um viashino anão, e sua esposa Pietra, que ajudava na cozinha, porém diziam que quando ela cozinhava, a comida não prestava. Afinal, é difícil cozinhar quando não se tem paladar.
Eles se sentaram, fizeram seus pedidos e comeram. Lá fora, começava a escurecer e as grandes edificações reluziam com o dourado radiante do sol poente. Uma garçonete se aproximou trazendo a conta, e entregou o papel com os valores para Valerius. Ele olhou cuidadosamente, parecendo calcular os valores, mas enquanto fazia isso, brotou novamente aquele sorriso no rosto, do tipo que parecia que ia aprontar.
“Parece que está tudo de acordo aqui, com exceção de um detalhe, senhorita. Não serei eu quem vai pagar a conta,” disse isso olhando para Beatrice, cujas sobrancelhas ficaram arqueadas instantaneamente. Ele fez um gesto para que a garçonete se aproximasse mais, e falou em tom sussurrante, como se fosse contar um segredo.
“Sabe, não vou pagar a conta porque sou apenas um acompanhante de luxo.”
Na mesma hora, a garçonete corou de vergonha, piscando perplexa pela situação. Valerius começou a rir, enquanto Beatrice sentia um mix de raiva e alegria pela brincadeira realizada. Estava claramente escrito em sua testa “vou te matar, seu maldito!”, mas ela também começou a rir daquilo tudo.
Eram momentos assim que faziam a vida valer a pena.
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“Isso é hoje? Quando estamos?”
Outra vez. Seria um lapso, um apagão? Ela não saberia dizer.
“Hei, acorde mocinha!”
Ela se espantou ao ver Valerius ao seu lado. Era de noite, e ambos estavam sentados no banco, aguardando o próximo cocheiro para que pudessem ir ao seu novo destino.
“Valerius, tem certeza que isso é uma boa ideia? Digo, é perigoso?”
“Mas é claro que é perigoso, se não fosse eu nem sairia de casa! O que é a vida sem um pouco de adrenalina?”
Ela revirou os olhos de raiva. Ela sempre o fazia quando Valerius procurava um ponto positivo em qualquer coisa.
“Não sei não. Esse lugar parece uma quebrada arriscada. Podemos ser presos se os Boros aparecem por lá.”
“Relaxe, isso não vai acontecer, ou pelo menos há chances mínimas. De qualquer forma, quando foi que te coloquei em apuros?”
“Você quer que eu enumere em ordem cronológica ou alfabética?”
“Deixe disso, nem foram tantas vezes assim. Mas esta noite será diferente; espere por isso, vai ser legendário!”
Por experiência própria, Beatrice sabia que quando ele dizia que seria legendário, acabaria com besta Gruul correndo atrás deles, escapando de algum beco de goblins ou pior. Eles pegaram a próxima carruagem e depois de uns trinta minutos, chegaram ao seu destino. Ficaram parados, olhando para a pequena porta do estabelecimento; não havia letreiro iluminado, nem nada que indicasse que aquele era o local certo, mas segundo Valerius, era aquele local mesmo. Eles o chamavam de Clube da Luta, e era extremamente confidencial porque somente entram aqueles que eram convidados a dedo. Valerius puxou um papel do bolso, o convite daquela noite, e no papel continha a programação do evento.
Grande luta de hoje! Homem versus besta. Quem sairá vitorioso?
Eles entraram no lugar, que aparentemente, era apenas um barbearia com um ogro com quase dois metros de altura, vestido um terno e ao seu lado, um elfo com uma cicatriz no olho direito. Estavam sentados quando a porta fez o barulho da campanhia e logo se puseram de pé.
“Estamos fechados. Volte amanhã se quiser fazer a barba,” disse o elfo emburrado.
“Minha barba está boa, mas preciso de xampu.”
Beatrice olhou para ele espantada pela resposta sem sentido. Ora, por que diabos ele precisava de xampu naquele momento. Mas só depois que percebeu o que estava acontecendo ali: aquela era a senha para os convidados poderem entrar no Clube da Luta. O elfo olhou para cima, em direção ao ogro, e fez sinal com a cabeça dando a entender que estavam liberados.
“Sigam meu companheiro, ele os levará para lavarem o cabelo.”
Eles seguiram o ogro engomadinho pela porta dos fundos, a porta dava para uma escadaria subterrânea bastante iluminada. Enquanto desciam, eles podiam ouvir o som da multidão delirante que gritava ensandecida.
“Blanka! Blanka! Blanka!”
Ao final da escadaria, havia a entrada para um anfiteatro e no meio dele um ringue de boxe. Ao redor, humanos, elfos, goblins, viashinos e vedalkeanos se amontoavam gritando enquanto o primeiro round acontecia. Valerius puxou Beatrice pela mão, abrindo caminho na multidão até encontrar um lugar bom para que pudesse assistir a luta; alguns goblins com uniformes de vendedores caminhavam entre as arquibancadas vendendo pipoca, amendoim, lesmas e algum tipo de comida gosmenta cujo sabor, ninguém arriscava experimentar.
Eles acharam lugar entre a multidão, pegaram um local mais alto onde pudessem observar melhor. Embora a entrada fosse pela escadaria da barbearia, havia outras quarto portas espalhada pelo local; saídas de emergẽncia em caso de desastre ou de invasão.
“Vamos, diga-me em quem você apostaria, Beatrice?”
Ela se ergueu, e ficou tentando analisar os lutadores. O primeiro round havia terminado e cada um estava em seu canto; de um lado, havia um homem-fera, cabelo vermelho, bermuda rasgada e pele verde. Era baixo, porém com um corpo troncudo e musculoso, mas não precisou muito para que Beatrice o reconhecesse. Aquele era o experimento X-32, uma tentativa de mutação de genes bestiais com a de um humano. O biomante que o desenvolvera foi desqualificado da função, aparentemente, ele descobriu que sua espécime poderia render alguns trocados no submundo dos ringues ravnicanos. No outro canto, havia um ogro brutamontes sendo aconselhado por seu treinador em seu ombro; no letreiro acima deles, havia o rosto de cada uma e seus nomes. O ogro se chamava Mike Bison,
Sentando-se, ela se virou para Valerius e disse, “pode apostar tudo no experimento X-32. Além dos genes bestiais, usaram genes de rêmoras elétricas, uma espécie bastante rara do sul e, embora o experimento tenha sido declarado um fracasso para o Conluio, certeza que deve possuir alguma habilidade especial.”
“Muito bom ouvir isso, meu bem porque apostei tudo o que tinha nesse aí,” ele respondeu com seu sorriso costumeiro. Ao contrário dele, Beatrice expressou sua preocupação, porém nada disse. Mesmo sem dizer palavra alguma, ele respondeu às suas perguntas ocultas.
“Relaxe, se eu não puder pagar meu aluguel esse mês, posso me abrigar em seu apartamento.”
Ela revirou os olhos novamente e suspirando de raiva acabou comentando, “está bem, mas terá que cozinhar toda noite. Não vai ficar lá de graça.”
“Fechado. Mas isso não será necessário, estou me sentindo com sorte hoje.”
Mal suas palavras saíram de sua boca, um pelotão Boros surgiu por uma das portas de emergẽncia. Os soldados começaram a emitir decretos e sentenças de prisão, logo em seguida o caos se instalou. Os seguranças do Clube da Luta foram chamados para ganhar tempo, assim os organizadores poderiam escapar ilesos. Nas arquibancadas não era diferente, os cidadãos começaram a correr, derrubar uns aos outros, deixando pipocas e comidas espalhadas pelos cantos.
Ela ficou alarmada com a situação, se fosse levada pelos Boros, provavelmente perderia seu trabalho, todavia, antes que o desespero tomasse conta dela, Valerius a puxou para perto de si e sussurrou em seu ouvido, “como eu disse, sem um pouco de emoção o que seria da vida?”
E outra vez estava lá, aquele sorriso estampado em seu rosto; embora fosse irritante na maioria das vezes, o sorriso dele também transmitia confiança e ela sabia que tudo acabaria bem; ele pegou a mão dela e a puxou, atravessando a multidão, despistando dos soldados e indo em direção à entrada principal.
Ele estava certo, Beatrice pensou, essas pequenas emoções é que tornavam a vida única.
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“Isso é hoje? Quando estamos?”
Outro lapso e dessa vez, vários momentos, várias memórias. De repente, estavam sentados no cume de uma Roda Gigante, era o festival da colheita de Ravnica, e o Circo do Doutor Lao estava nas redondezas. Fogos Izzet incendiavam os céus, com seus tons alaranjados, carmesins, púrpuras, verdes e azuis; figuras se moldavam em suas chamas, na maioria eram silhuetas do grande Niv-Mizzet.
Ela olhou novamente e Valerius estava lá. Havia uma sensação estranha nela, uma que não sabia dizer o que era.
“Valerius, estamos mesmo aqui?”
“Ora, mas que pergunta idiota. Claro que estamos! Se eu não estivesse aqui, então como poderia fazer isso?”
Ele se aproximou dela, colocou as mãos em sua nuca e seus lábios foram ao encontro dos dela… mas o beijo nunca aconteceu, ou se aconteceu, ela não conseguia dizer. Tudo se escureceu novamente, as imagens surgiam como flashes em sua mente.
Agora, havia um odor acre no ar. O que seria?
Sangue. Sim, era sangue, mas havia algo mais, algo que ela não conseguia lembrar o nome.
Olhou novamente, e o que viu era caos, desgraças e morte. Havia dezenas de corpos espalhados pelo chão, alguns tiveram os globos oculares arrancados e entre os ravnicanos havia outros seres; criaturas com enxertos e partes mecânicas.
O cheirou adentrou suas narinas novamente.
O que era mesmo?
Além do sangue, havia outro odor. Um odor que a fazia lembrar da antiga oficina de seu pai, um engenheiro Izzet que trabalhou nos bueiros de vapor da cidade. Sim, havia algo familiar no cheiro. Ela olhou ao redor, conseguia ouvir gritos, comandos e o som da batalha.Valerius estava com um contingente Selesnya, contendo os invasores. Lobos, centauros e elefantes destroçavam os inimigos fazendo-os em pedaços. Ela estava ajoelhada no chão, escorria sangue do seu lado direito e, ainda em atordoada, não percebeu a aproximação de Valerius.
“Vamos, há uma guarnição Boros a duas quadras daqui, preciso te de deixar lá e retornar para minhas tropas para montarmos um esquadrão de resistência. Consegue se levantar?”
Ainda confusa, ela balbuciou.
“E-eu, acho que sim.”
Ele a puxou pelo braço e a colocou embaixo de seus ombros, retornaram à sua caminhada em direção à guarnição Boros.
“Valerius, eu me sinto estranha. Eu ainda sou eu?”
Olhando com seu ar de deboche costumeiro, ele respondeu prontamente. “Se você não fosse você, eu não estaria aqui, não é mesmo? Vamos, mais uns quinze minutos e te deixarei aos cuidados dos médicos de batalha.”
“Há vozes em minha cabeça, Valerius. Sinto-me como se estivesse perdendo minha vontade própri…”
A frase nunca foi finalizada. Seu corpo começou a se contorcer, de seu braço ferido surgiu uma garra mecânica, sua cabeça rodopiava com frases, ordens, sentenças e um nome sendo sussurrado.
Phyrexia.
Tudo aconteceu muito rápido. Quando percebeu, suas garras tinham atravessado o corpo de Valerius. Ela queria gritar de dor, mas não saía voz alguma de sua garganta, as únicas palavras que saíram foram, “Tudo será um.” Ela sentiu a vida se esvair de Valerius, mas estranhamente, houve algum prazer naquilo. O odor retornou, o cheiro do óleo inundou suas narinas e um sorriso diabólico tomavam conta dela.
Os outros soldados Selesnya partiram em direção a ela, gritando o nome de seu capitão, mas para ele era tarde demais. Cercada por uma tropa, ela lutou, mas lutava em nome de um lugar que não conhecia, por uma causa que não era dela; lutava e cortava seus antigos aliados sentindo prazer na carnificina e por um momento de lucidez, também desejou que sua vida se esvaísse.
Em algum momento, tudo ficou escuro e silencioso..
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“Beatrice, acorde, vamos!” Acorde!”
Ela abriu os olhos e logo em seguida se arrependeu disso. Estava dentro de um tubo, mergulhada em alguma substância com uma máscara de oxigênio no rosto. A primeira coisa que sentiu não foi a vida retornar, mas os enxertos em seu corpo, suas partes mecânicas, o cheiro do óleo e junto disso tudo, memórias. Memórias de morte, sangue e dor; rapidamente, ela mexeu os olhos como se procurasse alguém, mas a única pessoa que encontrou foi o biomante sênior Douglas.
“Ele não está aqui, infelizmente. Mas pelo menos conseguimos resgatar você. Após a derrota dos invasores, aqueles que sofreram suas mutações ficaram desativados, como máquinas desligadas. Resgatamos o máximo de Simic que podíamos e agora, Zegana está empenhada em tentar reverter o processo de completação. Você é nosso primeiro êxito.”
Ela fechou os olhos novamente; havia muita dor em sua alma, pois ela conseguia se lembrar de atos hediondos que realizara e dentre eles, o pior de todos. Valerius se fora, morto por suas próprias mãos.
Por que ela deveria viver tendo tirado a vida de tantos? Não era justo. Ela desejou que nunca tivesse aberto os olhos novamente, assim pelo menos estaria em paz. Que existência ela teria após tudo isso?
Ela desejou chorar, mas não tinha forças para isso e em meio a tantos conflitos, perguntas e dilemas, estranhamente, ela ouviu a voz de Valerius tão clara como se ele estivesse ali, em frente a ela.
“Não importa o que houve no passado, o que importa é o presente e como viveremos a partir daqui. E eu sei como quero viver, mas a pergunta é: você sabe?”
As palavras a acertaram em cheio. Droga, ele sempre estava certo e ela o odiava por isso. Mesmo agora, após partido, após tudo o que aconteceu com ela e, embora não se sentisse mais ela mesma e sim como um fantasma do que fora, um fantasma habitando uma carcaça vazia, ela tentaria viver novamente.
Ela viveria, por ela e por ele, a vida que lhes foi privada.
Eu deixei alguns Easters Eggs no texto, quem encontrar lista aí nos comentários. Já avisando que alguns deles denunciarão sua idade!
Vlw Natalina.