É mistério para ninguém que convive comigo que eu não estava muito animado com Ruas de Nova Capenna, a nova coleção de Magic: The Gathering e que estreará no próximo dia 29. Por diversos momentos, eu zombei da coleção chamando-a de Nova Capenga e expressei meu desânimo com ela. Toda essa aversão inicial veio principalmente pelo tema de “Anjos contra Demônios" e pela pegada mais sombria que a coleção parecia ter (lembrando muito Innistrad, um plano que eu admito não gostar).
Entretanto, ao começar a ler os capítulos da sua história para escrever essa review, surpreendi-me ao ver que estava completamente errado.
Esta review leva em conta os meus gostos pessoais e possuirá spoilers. Sei que muita gente pode não ter gostado da lore da coleção, mas podemos discordar educadamente. Dados esses avisos, vamos fazer nossa viagem às Ruas de Nova Capenna.
O Princípio de uma boa História.
Para começar essa análise, tenho que deixar claro meus critérios pessoais para que eu considere uma história “boa”. Como leitor, eu sempre espero que uma história consiga me fazer sentir algo. Não me importa se for raiva, tristeza ou esperança, para mim, boas histórias te permitem emergir em seu conteúdo ao ponto de ela fazer inspirar sentimentos. Eu admito que esse é um critério muito subjetivo, mas, através dele, eu posso dizer que gostei muito da história de Ruas de Nova Capenna.
Ao ler as primeiras informações sobre o tema da coleção, imaginei que novamente iriam criar aquela velha narrativa de um conflito entre o bem e o mal. Quando se colocam os elementos de anjos e demônios, é muito fácil cair no vício narrativo do bem contra o mal. Isso acontece principalmente quando temos os demônios representando a máfia, pois temos estabelecida na cultura pop a ideia de máfia como uma organização inerentemente ruim e sanguinária.
Ao chegar em Nova Capenna, eu tive uma boa surpresa ao descobrir que não seria assim. Os anjos do plano não são nada mais do que distantes lembranças abstratas para a maioria dos cidadãos, enquanto os demônios e as cinco famílias possuem várias facetas, preocupando-se inclusive com o bem-estar e a estabilidade da cidade. Por se passar em uma grande cidade dominada por facções, Ruas de Nova Capenna possui elementos que nos remetem a Ravnica. Contudo, o espaço e os recursos reduzidos de Nova Capenna, em comunhão com o menor número de facções, proporciona um equilíbrio de poder maior entre as cinco famílias. Todas as famílias mafiosas possuem um papel bem estabelecido na cidade, algo que não acontece sempre em Ravnica (sim, estou falando de você Gruul). Assim como as Guildas, as famílias possuem rivalidades, e uma quer se sobressair em detrimento da outra, mas, ao contrário das suas irmãs "ravnicanas", parece ser quase consenso aos Capennianos que uma família precisa do serviço especializado das outras.
Dito isso, não estou falando que Nova Capenna seja superior a Ravnica, mas que ela conseguiu trabalhar melhor algumas coisas. Inclusive, nada me faz deixar de pensar que talvez nossa última visita a Ravnica, quando as guildas foram divididas em dois blocos de cinco guildas em cada coleção, tenha contribuído para o acerto em como desenvolver esse novo “plano-cidade”. Isso deve em partes por ambas trabalharem bem em sua lore as relações entre facções e os cidadãos comuns, e não apenas a vida dos grandes heróis das guildas, como havia sido feito anteriormente. Nova Capenna também teve erros, dos quais eu falarei mais para frente.
Novos Amigos, Velhos Conhecidos
Além da ambientação interessante e da nova abordagem de um gênero já conhecido, Nova Capenna teve um outro aspecto que me agradou muito: seus personagens. Se eu pudesse, destacaria cada personagem, mas vou focar apenas nos seguintes: Don Xander, o Colecionador, Giada, Fonte de Esperanca e Elspeth Tirel.
Nunca fui muito fã de Elspeth, como também nunca desgostei dela. Para mim, ela sempre foi uma personagem muito amena, sem muito sal ou desenvolvimento. A aura que ela passava de "heroína perfeita” sempre me incomodou. Mesmo perdendo, mesmo tendo de fugir, Elspeth sempre parecia uma imagem imaculada de perfeição que sempre sabia o que fazer, mesmo que tentassem dar um aspecto de dúvida para ela. Isso até agora. Em Nova Capenna, nós pudemos ver uma Elspeth quebrada por combates e perdas, confusa e querendo achar seu lugar no mundo. Pudemos ver o lado humano de Elspeth, uma criança que teve de se tornar uma guerreira, uma guerreira que teve de se tornar uma heroína e que falhou no caminho. Elspeth vai a Nova Capenna buscando um lar, mesmo tendo sido avisada por seu amigo Ajani de que um lar não é um lugar. Lá ela conhece dois seres que, embora seus caracteres possam ser postos em dúvida em diversos aspectos, mostram que compaixão e lealdade podem vir de qualquer lugar.
O primeiro deles é o demônio vampiro Don Xander, o Colecionador, uma grande e excelente surpresa para mim. Desde o início, Xander se mostra um personagem nostálgico e cansado, um ser que viveu muitos anos e foi marcado pelo tempo, lembrando muito para mim Don Vito Corleone, da franquia de filmes O Poderoso Chefão (inclusive há uma carta com Xander na arte que é uma clara referência a uma das frases mais famosas de Don Corleone: Oferta Irrecusavel). Embora seja o líder de uma família de assassinos vampiros, Xander é um colecionador de artes, um alfaiate e um apreciador da vida (como mostrado nos vários momentos em que ele contempla a vista a partir de sua sacada). Mesmo sendo o “homem que sabe de tudo”, o demônio sofre com as lacunas em sua memória. Xander sabe que suas ações são ruins (inclusive questiona se ainda possui uma alma), mas ele também sabe que elas foram necessárias para manter o equilíbrio dentro da cidade. Mesmo possuindo mentalidades completamente diferentes, Xander e Elspeth desenvolvem durante suas interações um respeito mútuo, pois o vampiro entende que naquele momento a guerreira é o que a cidade precisa para enfrentar a crise que está por vir devido ao Ob Nixilis, o Adversario. Toda a complexidade que o líder dos Maestros demonstra em tão pouco tempo de texto o torna um personagem muito gostoso de conhecer.
Logo em seguida, podemos conhecer Giada, Fonte de Esperanca, uma personagem que prometeu nada e entregou tudo. De início, a personagem demonstra ser uma adolescente tímida e reprimida, que revela ter o poder para solucionar todos os problemas da cidade a custo de sua própria vida. De cara Giada e Elspeth se aproximam durante sua fuga, muito por Elspeth se ver em Giada e querer protegê-la. Devido à interação das duas, podemos ver a adolescente crescer, ganhando a força para proteger seu lar e aqueles que ama, descobrindo quem é. Para mim, foi muito satisfatório ver essa evolução de Giada, mesmo que em pouco tempo.
Xander e Giada não poderiam ser mais opostos: O primeiro é um velho vampiro demônio com poder sobre toda a cidade, mas que não pode salvá-la. A última é uma adolescente frágil que na verdade é um anjo e a única que poderia salvar o equilíbrio baseado no Halo. Todavia, embora sejam diferentes, ambos personagens mostraram fazer de tudo, inclusive se sacrificar, para proteger os seus (como quando Xander despacha Anhelo, pois não o quer no seu confronto contra o Adversário). Elspeth pode não ter achado um lugar para ficar, mas achou, no carinho e no reconhecimento de dois seres aparentemente opostos, um motivo para lutar. Para mim, não é exagero dizer que Ruas de Nova Capenna é para Elspeth o que Ixalan foi para Jace: um novo ar para um personagem estático. Foram mostradas falhas terríveis em ambos, mas também foram mostrados quem esses personagens podem ser. Eu só espero que esse desenvolvimento não vá para o mesmo lugar que foi o desenvolvimento do Jace de Ixalan. Veremos isso em breve.
Outro ponto menos marcante que gostaria de comentar são as participações de dois personagens antigos: Urabrask, Pretor Herege e Vivien Reid. Ao chegar em Nova Capenna, Vivien conhece Tezzeret e Urabrask, que está vivo e diz planejar uma investida contra Elesh Norn, Cenobita-Mor. Vivien rapidamente se alia ao pretor e busca um dos poucos seres que a Grande Cenobita teme: Elspeth. Gostei dessa volta de Urabrask, e, embora não confie nem um pouco nele, é interessante ver que ele ainda está vivo e se opõe a Elesh, podendo ser importante para a derrota dos novos phyrexianos ou um plot twist em formação. Já Vivien não possui muito foco, mas, para mim, foi muito legal vê-la interagindo com Giada e Elpseth. Senti uma Vivien um pouco menos estóica do que eu espero que seja levada para frente. Ainda estou aguardando uma história em que a última habitante de Skalla possa ser a protagonista e ter um pouco de desenvolvimento como personagem.
Críticas e Pontas Soltas.
Claramente não se pode acertar em tudo.
Minha primeira crítica é direcionada mais em como a Wizards of the Coast administra a lore de Magic: The Gathering do que a Ruas de Nova Capenna. Esse formato de dez capítulos me incomoda muito. Como cinco capítulos são direcionados a desenvolver o mundo e personagens secundários e 5 são para a lore da coleção em si, temos pouco tempo para poder desenvolver ambas as frentes. Em diversos momentos, a Wotc demonstrou não se importar muito com a história do jogo. Para mim, um dos sintomas dessa atitude é essa escassez de espaço e de tempo para melhor desenvolvê-la e seus personagens.
O outro problema, dessa vez mais focado na coleção em si, é a ausência de informações sobre os Rebiteiros. Os Maestros e Cabaretti são praticamente protagonistas na história principal, os Obscura e Mediadores têm cada um seu próprio conto que mostra muito sobre eles. Contudo, os Rebiteiros ficaram jogados a segundo plano. Sua líder só apareceu em uma breve passagem no primeiro capítulo e seus membros não foram muito relevantes. Como se não bastasse a falta de aparições em comparação com as outras famílias, os Rebiteiros sofrem de outro problema recorrente nas lores de Magic: o ÓDIO que a Wotc parece ter pelo Vermelho.
Não vou nem entrar no mérito de nível de poder dentro do jogo, pois minha área é a lore. Uma coisa que me incomoda, em toda vez que temos uma facção vermelha dentro do Magic, o vermelho se manifesta como raiva ou violência gratuitas. Parece às vezes que a Wotc confunde ser emocional com ser instável, sendo que deveria ser visto como ser empático. Nos poucos momentos em que o vermelho é caracterizado de forma diferente, ele se manifesta na criatividade, mas ainda sim é uma criatividade impulsiva e não pensada (como acontece com os Izzets e os Primari, que são criativos, mas fazem coisas estúpidas, porque são impulsivos). Parece que a Wotc ainda não acertou em como fazer o vermelho ser uma característica, e não um defeito. Nesse caso, os Rebiteiros são novamente apresentados como agressivos, fazendo alvoroços e levantes.
Saindo um pouco das críticas, queria falar de algumas pontas soltas que gostaria que fossem exploradas no futuro. O Primeiro ponto é o passado de Elspeth, pois é dito que ela é uma Campaniense da época em que o plano foi invadido por Phyrexianos, contudo a invasão aconteceu séculos antes do momento atual. Inclusive, durante a história é dito que Elspeth é um nome muito antigo. Ao que parece, Elspeth é bem mais velha do que parece ser, e minha teoria é que, para parar os phyrexianos, os demônios usaram os anjos como uma bateria de mana para um feitiço de Distorcao Temporal. Isso seria interessante, mas gostaria que eles explorassem o plot e me surpreendessem com uma solução diferente desse mistério. Outro ponto solto é qual é o objetivo de Tezzeret, que já foi mostrado ajudando Vorinclex, Salteador Monstruoso, Jin-Gitaxias, Tirano do Progresso e Urabrask e que até agora não mostrou seus reais interesses em todo esse embate que está próximo a se iniciar.
Notas do Dingo
- A lore de Ruas de Nova Capenna me fez sentir intimidade e empatia com aquele mundo e seus habitantes em poucos capítulos, deixando em seu fim um gostinho de “quero mais” direcionado a Dominaria Unida. Resta uma pergunta: O que teremos a seguir? Só nos resta esperar.
- Para escrever esse artigo, eu li a lore da nova coleção, que eu recomendo fortemente e que vocês podem encontrar aqui. Gostaria de aproveitar para convidá-los a conhecerem meu novo canal: A Toca do Dingo. Nosso foco será comentar e debater notícias, curiosidade e subtextos acerca de jogos, filmes e séries. Para quem gostou do tema da máfia e quiser saber um pouco mais sobre, nosso primeiro vídeo (que sairá essa semana) abordará o assunto, então fique de olho.
- Caso tenham gostado, recomendo a um amigo, e no caso de dúvidas, curiosidades que deixei passar ou correções, peço que comentem educadamente nesse texto e fiquem atentos para os próximos. Não deixem de comentarem aqui a opinião pessoal de vocês sobre Ruas de Nova Capenna, para gerarmos um debate saudável.
Um abraço caloroso e até a nossa próxima conversa.
Por que Vermelho é a cor do sindicalismo. (piada heim)
Muito obrigado pelo comentário, ele da muita força para continuar escrevendo
também tinha essa impressão, mas gostei de ver que eles parecem ter aprendido um pouco com Ravnica em como se limitar as vezes pode ser bom.
gostaria que voltassem a traduzir, seria muito bom, mas enquanto isso não acontece eu sei de ótimos criadores de conteúdo que traduzem e contam a lore do Jogo no youtube
Infelizmente, não vejo isso aocntecendo.
As vezes parece que a WoC abriu mão da lore a algum tempo, espero que essa serie de MTG que foi anunciada reacenda a vontade deles de investir nessa parte tão interessante do jogo
Também gostei de saber que continuam publicando os contos no site da Wizards, mesmo em inglês. Acompanhava quando estavam disponibilizando em português, mas como não teve mais nenhuma depois da Guerra da Centelha, achei que tivessem parado.