Oi, Amores! Primeiramente, Feliz Ano Novo! Eu espero que 2021 esteja tratando vocês bem e tenha renovado muitas esperanças para todos. Segundamente, hoje não vamos falar de cartas, mas não fecha esse artigo que o papo é ótimo, prometo. Você provavelmente viu ou ouviu falar de uma série que a Netflix lançou no final de 2020 chamada O Gambito da Rainha. A minissérie em 8 capítulos conta a história de uma enxadrista profissional e sua vida no circuito de xadrez competitivo. Em 28 dias, a série já ultrapassava 62 milhões de reproduções e virou rapidamente o assunto do momento.
Olha pessoal, eu fiquei um tempo pensando nessa série, desde que ela saiu, eu queria escrever algo sobre e não sabia nem como começar. Porque o que eu senti vendo muito daquela história foi… identificação. Como uma jogadora competitiva que acabou ganhando um certo reconhecimento, muitas das situações que a protagonista passou me lembraram a minha trajetória. O estalo veio quando uma amiga minha, jogadora profissional de Hearthstone e que muitos de vocês conhecem, Nayara Sylvestre, postou sobre ter visto a série e ter se identificado com muita coisa também. Então eu conversei com a Nay e aproveitei pra conversar com mais algumas jogadoras de card games sobre alguns aspectos da série.
- Sendo uma Pessoa Pública
Sejamos 100% honestos aqui: por mais que hoje tenhamos um ambiente mais amigável e que os jogos estejam evoluindo rápido para que mulheres estejam cada vez mais presentes nos ambientes competitivos, ainda não temos uma proporção 50/50, a esmagadora maioria dos competidores segue sendo do sexo masculino.
Isso acontece porque os homens jogam melhor? Não, isso acontece por uma série de diferenças de fatores, oportunidades, tratamentos e outras nuances entre jogadores homens e o restante da população. Mas eu dei essa volta toda para dizer que é muito comum que, quando uma jogadora começa a ir bem e se destacar dentro da comunidade, a atenção vire para ela. E aí essa jogadora vai dar entrevistas, responder perguntas dentro do ambiente de jogo e despertar a curiosidade dos outros jogadores.
A primeira cena que me marcou na série foi a cena em que a protagonista fala sobre as entrevistas que ela dá. Ela questiona o motivo das suas entrevistas focarem tanto no fato dela ser uma menina. E preciso falar pra vocês que isso acontece demais. Acho que a pergunta que mais respondi em entrevistas foi “como é ser uma jogadora mulher no meio de tantos homens?” Por mais que eu entenda que normalmente não existe maldade nessa pergunta, eu sempre me questionei por que as pessoas não queriam saber da minha vida como jogadora. Sobre escolhas de baralho, jogadas não convencionais, sobre minha preparação para torneios ou qualquer outra pergunta técnica que meus amigos costumam responder em entrevistas.
Eu conversei com a Nay sobre isso e a resposta dela foi muito parecida: “Acho que uma das partes da série que eu mais me identifiquei, foi a da repórter no quarto de hotel, onde ela pergunta algo como "como é ser uma mulher nesse meio tão masculino" e cansa, esse é um assunto já tão batido que até parece um insulto. Todos já sabem que é ruim, a gente fica com esse sentimento de que não podemos errar porque sabemos que seremos duplamente julgadas. Eu quero ser entrevistada porque eu sou uma boa atleta, e não porque eu sou mulher e atleta.” E aqui eu gostaria de puxar dois assuntos. O que ela disse sobre cansar é real, a gente vai ficando cansada de responder sempre a mesma pergunta e de não aprofundar nunca.
Ano passado eu escutei um episódio do Nerdcast chamado Profissionais dos E-sports, nesse episódio, uma das convidadas, Bárbara Gutierrez diz a mesma coisa: que é muito ruim ser chamada para uma entrevista sabendo que você só vai responder essa pergunta. E sim, a gente sabe quando somos chamadas só para fazer o papel da “mulher no meio dos games” da entrevista. Eu sou eternamente grata a todas as entrevistas que eu dei em que os entrevistadores fizeram questão de não ir por esse caminho e quiseram de fato saber mais sobre a minha trajetória. Então fica aqui meu apelo: se você for entrevistar uma de nós, imagine fazer as perguntas para um jogador. Se não fizer sentido nenhum quando você pensa em perguntar para um homem, talvez seja legal evitar a pergunta.
O outro tópico que eu gostaria de citar é o que a Nay fala sobre não poder errar e de sentir que vamos ser duplamente julgadas. Acho que eu já falei sobre isso muitas vezes em live e com amigos, mas quero deixar registrado aqui também: é difícil pra caramba viver de e-sports sendo mulher. Seja como jogadora competitiva, como criadora de conteúdo ou como caster, parece que a gente precisa se esforçar dez vezes mais para fazer metade do barulho que um criador de conteúdo normalmente faria. Precisamos ser absolutamente fora da curva, impecáveis nas palavras, produtoras brilhantes e saber que, mesmo assim, nosso teto é sempre mais baixo. A gente vive, muitas vezes, sob uma constante pressão de achar que não podemos errar, que o mundo vai ser muito mais duro conosco. E normalmente é. Quando eu estava falando sobre isso com o Rudá, aqui da liga, ele citou uma entrevista da Emma Handy durante o Zendikar Rising League Weekend.
A Wizards recentemente optou por adotar vagas discricionárias em sua principal liga profissional e, posteriormente, na Rivals League. A medida sobreviveu a duras críticas do público. Muita gente manifestou desgosto em garantir vagas de representatividade e questionaram o motivo do ingresso não ser apenas via resultados. Deixa eu contar uma coisa para vocês: não adianta acreditar no mundo mágico da meritocracia quando, para todos nós que fugimos do padrão do que a sociedade entende como um jogador, não é, nunca foi, só “sentar e jogar”.
Durante a entrevista, Handy discorre sobre a pressão de ter recebido um dos convites discricionários e o sentimento de que você constantemente precisa provar que merece estar naquele lugar. A medida da Wizards para incluir essas pessoas no circuito profissional, para mim, foi um grande acerto. Quando eu comecei a jogar, eu escutava falar sobre uma jogadora que havia feito top 8 em um Pro Tour, mas agora trabalhava na empresa, Melissa De Tora. Ela era a única referência de figura não masculina que eu tinha e eu não peguei a fase de vê-la jogar. Nos últimos anos, eu vi a Jessica Estephan ganhar um Grand Prix, Autumn Burchett ganhar um Pro Tour e várias pessoas incríveis ganharem suas vagas na Magic Pro League e na Rivals, renovarem suas vagas e conquistarem mais uma série de títulos. Eu consigo citar pelo menos uma dúzia de jogadoras que eu admiro e me inspiro e muito dessa visibilidade começou com essa decisão da Wizards.
- No Meio dos Meninos
Uma das perguntas que eu fiz para as meninas com quem eu conversei foi se elas já tinham passado por alguma situação em que elas tiveram a sensação de que não aconteceria com um homem. Eu não perguntei especificamente de machismo, a intenção era saber mais como foi desbravar um ambiente em que tanta gente talvez achasse que não era o lugar delas. Conversando com a Geni Souza, ela me disse que “conhece bem esse olhar, aquela sensação de que parece que estão todos se perguntando o que a gente tá fazendo ali”, essa sensação de não pertencimento acaba afastando muita gente das lojas.
Outra jogadora que preferiu não se identificar contou que sempre que ela entrava nas lojas, as pessoas ficavam encarando, olhando estranho, que muitas vezes seus oponentes nem olhavam para ela. “Eu me lembro bem de dois casos. O primeiro foi uma vez que juntou uma galera para me ver jogar com um jogador e, conforme ele ia perdendo, as pessoas começaram a tirar sarro dele por estar perdendo para uma garota, foi super constrangedor, o segundo foi ainda pior, eu estava entrando numa loja nova e tinha um rapaz indo embora. Na hora que eu entrei na loja, esse jogador me viu, voltou, virou para outro jogador que estava jogando magic e disse ‘isso existe?’ e o jogador que estava dentro da loja parou de jogar, olhou diretamente para mim, olhou para o primeiro rapaz e respondeu ‘não’. Eu nunca esqueci desse dia, porque, em poucas palavras, eu entendi o que eles estavam falando, que era ‘existe mulher que joga magic?’ Não, não existe”.
Conversando com a Nay, ela me contou um caso que aconteceu com ela: “Sim, teve um caso em janeiro do ano passado quando eu fui jogar um torneio em Arlington, anteriormente teve um caso de machismo de um jogador para uma outra jogadora. Ele perdeu pra ela algumas vezes e depois falou que ela deveria estar cozinhando em vez de jogar e esse tipo de coisa, e nesse torneio eu o enfrentei em um dos rounds, o menino nem olhou para mim, não apertou minha mão antes de iniciarmos o jogo, e ficou "dando Good Game" quando sentia que ia ganhar o jogo, terminou que eu ganhei dele de 3-2. E com os outros homens/meninos ele sempre foi cordial.”
Conversei ainda com a Tainã Steinmetz, jogadora competitiva brasileira e ela me contou dois casos: “eu ouvi numa loja que, por ser mulher, meu baralho devia ser de elfos ou unicórnio, outra vez eu saí chorando de um torneio porque o oponente disse que meu baralho era um lixo e eu deveria aprender a jogar direito antes de entrar em torneio. Era um torneio casual sem premiação”. Outra jogadora competitiva, a Mariana, me contou que foi ver o pareamento de um Grand Prix e um jogador atrás dela colou o rosto no cabelo dela e cheirou seu cabelo com bastante força.
Vocês lembram que eu falei lá em cima que não tem como acreditar em meritocracia porque nunca foi “só jogar” para nós? O objetivo desse artigo não é trazer dezenas de relatos como o artigo, Mas Não Tem Porque Se Vitimizar, mas se vocês quiserem se aprofundar nesse assunto, vocês sempre podem voltar lá naquele artigo.
O que as meninas relataram já ter acontecido com elas compõem demais a minha história. Já cansei de jogar com plateia, como a personagem do Gambito da Rainha, de ser menosprezada, de ter oponentes que nem me olhavam na hora de jogar e de ter pessoas acreditando que eu seria a oponente fácil. Já falei em muitas entrevistas que, para mim, a melhor mesa de um torneio é a área de feature match, porque é onde eu consigo jogar sozinha, sem pessoas em volta. Imaginem por 1s ter tanta gente em volta de você para te ver jogar que o lugar que te traz paz é a cadeira cheia de câmeras apontadas na sua direção.
Aquele papo que falamos sobre precisar se provar mais do que todo mundo e precisa constantemente demonstrar seu valor é sobre isso. Vencer esses olhares, lutar contra essa sensação de que estamos no lugar errado e seguir jogando apesar de todas essas micro agressões e discriminações declaradas não é trabalho para quem gosta mais ou menos de um jogo. Por trás de jogadoras competitivas, vocês vão encontrar pessoas apaixonadas pelo que fazem, porque ninguém que goste só um pouco continuaria jogando em cima de tudo isso.
A mensagem que eu gostaria de deixar com vocês hoje é: sejam gentis com pessoas não homens que jogam ou produzem conteúdo do jogo favorito de vocês. Nem precisa ser só Magic. Saibam que aquela pessoa superou muita coisa para seguir jogando e segue lutando contra mais ainda para continuar e se dedicar àquilo. E se vocês não viram O Gambito da Rainha, fica aqui minha indicação, acho que pode ajudar a enxergar esse mundo competitivo com outros olhos.
Por hoje, é só, pessoal! Não esqueçam de me acompanhar nas redes sociais, no meu Twitter (twitter.com/carolanet), Instagram (instagram.com/carolinaanet) e todos os dias às 21h pela Twitch, terças e quintas no canal da LigaMagic e 22h sextas, sábados, domingos e segundas no meu canal (twitch.tv/carolanet).
E me contem, tem alguma produtora de conteúdo ou jogadora que vocês admiram e gostam de acompanhar?
Um beijo e até a próxima,
Carol
Se o objetivo fosse gerar pessoas melhores, então o resultado dessa publicação teria sido uma falha catastrófica... Pedir desculpa por ser homem não é, de maneira alguma, gerar consciência. Além disso, a realidade que eu e todos que conheço vemos nas lojas (ou viamos antes de entrarmos em pandemia) desde 2003 é muito diferente da descrita aqui.
Na época dos seus pais nada disso era discutido e, por isso, os preconceitos na geração deles continuam enraizados até hoje. Na nossa geração estamos discutindo isso e nos tornando mais conscientes. Sim, o objetivo tem que ser mesmo gerar debate. A Carol não monetiza cliques na Ligamagic não, mas todos nos tornamos pessoas melhores se passamos a corrigir proativamente nossos comportamentos tóxicos.
Certeza.
Há inúmeros fatores periféricos que acabam estimulando e/ou desestimulando novos ingressos no jogo físico, cada um deles impactando mais ou menos as pessoas envolvidas, dependendo de sua idade, personalidade, classe social, história pessoal etc etc
Quanto maior for o foco dado no jogo em si, maior será a probabilidade de que o Magic acabe unindo as pessoas em um grupo local minimamente saudável, e maior será a probabilidade de que essas situações desagradáveis, que por vezes apenas refletem uma falta de maturidade por parte de alguns jogadores, acabem desaparecendo do ambiente de jogo, conforme o convívio e o respeito vão se desenvolvendo naturalmente.
Eu prefiro ser um otimista e ver no jogo de Magic um motivo suficiente de união e convívio entre as pessoas, união essa que supera qualquer diferença eventual que elas tenham, sob qualquer aspecto. Basta apenas que o interesse no jogo e o espírito lúdico ou de diversão estejam suficientemente presentes.
Quanto às eventuais babaquices e infantilidades, se não forem respondidas à altura e no momento, continuarão a existir no local de jogo, independente do sexo das pessoas envolvidas.
Ainda bem que não sou o único que notou que esse tipo de artigo está sendo publicado periodicamente.