Analisando as artes da nova edição.
A nova coleção de Magic: The Gathering, que marca o retorno as terras mais tradicionais do mundo do trading card game, ainda nem foi oficialmente lançada, mas causou e ainda está causando um grande rebuliço nostálgico nos jogadores – mesmo nesses que ainda batem na tecla do Power Level ser algo frustrante se comparado a antiga Dominaria.
A nostalgia fala mais alto que esses predizeres técnicos funcionais, e mesmo quando há a inserção de novas temáticas e designs que possam ser vistos negativamente, com o tempo essa visão negativa se torna escassa.
Além disso, é importante notar como cada vez mais a narrativa da história (lore) se mescla ao jogo de forma constante, e traz elementos que mesmo soando destoantes ao comum do jogo, são ricos em critérios estéticos e na formação do mundo proposto, criando aquilo que é a verossimilhança do universo (como já havia falado desde as masterpieces).
Esses elementos, em especial nessa coleção, foram denominados “cards históricos”, e dialogam fortemente com as artes históricas do mundo humano, onde as representações, de forma geral, ilustram as figuras históricas do passado, seus atos e objetos que outrora foram marcantes para o momento político e/ou que representavam a lapidação de uma sociedade enquanto tal (o que é chamado de patrimônio imaterial).
Dentro do mundo de Magic: The Gathering, atravessando as regras do jogo, nota-se que os “cards históricos” são os artefatos, as cartas lendárias e as Sagas. Todas as três categorias são respectivamente objetos históricos, figuras importantes (ou que tiveram ou tem relação com figuras/momentos importantes) e acontecimentos específicos e memoráveis.
Ora, apesar dessas informações soarem de forma demasiada óbvia para alguns, existe um motivo além que faz com que tais divisões ocorram de forma tão espontânea e concreta: a escolha dos “historiadores”. Primeiro coloco aqui entre aspas os historiadores pois estamos falando de fantasia, mas o ponto que quero chegar é na reflexão sobre as artes históricas de Dominaria – e também do mundo.
Para que essa perspectiva se torne mais clara, utilizarei como referência o texto “Documento-monumento”, do historiador Jacques Le Goff. Ele faz parte do livro História e Memória, de 1988, e é uma reflexão sobre o conceito de história.
Antes de adentrarmos nos critérios visuais do jogo, caminhemos sobre a idéia de história construída pelo teórico: para Le Goff, a história – forma científica da memória coletiva – é resultado de uma construção, sendo que os materiais que a imortalizam são o documento e o monumento. Para o autor,
“o que sobrevive não é o conjunto daquilo que existiu no passado, mas uma escolha efetuada quer pelas forças que operam no desenvolvimento temporal do mundo e da humanidade, quer pelos que se dedicam à ciência do passado e do tempo que passa, os historiadores. Estes materiais da memória podem apresentar-se sob duas formas principais: os monumentos, herança do passado, e os documentos, escolha do historiador” (p.535, 1996).
A partir dessa idéia, podemos notar como de fato a história do novo bloco é fortemente pautada em seu passado, criando reflexos que são muito comuns dentro um mundo palpável e interligado com ações e consequências. Isto é, através de conexões que são dadas a partir de um ponto de vista parcial e ideológico, gerando resultados futuros (o que não precisa ser encarado como negativo).
Como muitos sabem, a história nem sempre é a mesma – mesmo a oficial. Certos fatos que ocorrem mudam de nome de acordo com a premissa política do momento e/ou com a perspectiva daquele que detém o poder (mas não iremos mais caminhar nesse ponto neste artigo).
Voltando aos destaques de Le Goff, vamos adiantes, destrinchando monumento de documento: enquanto o monumento é “poder de perpetuação, voluntária ou involuntária, das sociedades históricas” (p.536, 1996) – como testemunhos não escritos – o documento, para a escola histórica positivista do fim do século XIX e do início do século XX, é o “fundamento do fato histórico, ainda que resulte da escolha, de uma decisão do historiador” e “parece apresentar-se por si mesmo como prova histórica. A sua objetividade parece opor-se à intencionalidade do monumento” (p.536, 1996).
O que é importante destacar daqui, é que os monumentos e os documentos estão de fato presentes em Dominaria e eles são, inclusive, o que nos conecta ao bloco anterior de forma plena – causando aquelas reações tão típicas como “nossa, esse flavor está fantástico” ou “você viu quem está ali, é aquele cara daquela carta lá, que é um feitiço [...]”. Por outro lado, assim como no mundo real, também é possível ver comentários como “mas essa Dominaria ta muito Nutella, na minha época...”, parece bobo, mas a vida imita a arte e esses comentários se dão em algum nível pelo subconsciente que os considera documentos ou monumentos.
Mas se o monumento é algo relacionado ao conversar, àquilo que não é fixo e comprovado, como ele se dá em Magic: The Gathering?
Vejamos exemplos do que pode ser considerado um monumento dentro do jogo e por que.
Em Danitha Capashen, nos conectamos a figura histórica de Dominaria, Gerrard Capashen. Primeiramente, sua relação com o passado, por mais que em um universo palpável de construção de documentos pudesse ser comprovada (como dita a escola histórica positivista do fim do século XIX e do início do século XX), aqui se dá pelo seu sobrenome e sobre aquilo que a personagem dita ser como “pertencente a um Capashen” (vide o texto ilustrativo da carta). Tais características são claramente pertencentes ao monumento, já que são elaboradas na convicção e na informação prestada de forma voluntária – nesse caso – tendo por premissa que todas as cartas de criatura representam o presente dentro de uma linha de tempo contínua – onde Dominaria vem depois de Rivais de Ixalan (a partir do ponto de vista do jogador – ou seja, o que é nosso presente não necessariamente é o presente histórico de Magic: The Gathering, mas essa informação só está aqui a nível de curiosidade).
O documento, por sua vez, é mais simples de compreender, mas ainda assim mostra a perspectiva daqueles que se consideram como o ponto de vista oficial. Isso se torna mais claro no exemplo abaixo – que apesar de não ser um livro ou documento literal, conta uma história de forma fixa ao momento atual.
Em “Triunfo de Gerrard”, a estrutura visual do encantamento é pautada em cima da idéia de escultura, que por sua vez foi resultante de um possível documento (apesar de não estar situado com a lore) – seja este escrituras presentes no desenvolver da história e/ou mesmo o fato de considerar que a Saga enquanto carta seja uma referência a algo marcado oficialmente no mundo proposto. A escultura, item típico da representação histórica-política artística, como é possível comparar no momento neoclássico desse caso (onde a bravura representada seria considerada um ponto de vista, e um ideal de construção física e de ação se torna presente através do heroísmo representado), aqui se torna o cabal de que há um ponto de vista considerado correto de se afirmar como passado e uma ação que resultou num momento memorável e inesquecível de Dominaria.
O que pode ficar em aberto, porém, é que assim como descrevi sobre “um mundo onde tal fato não pudesse ser comprovado” é de que as ações como ocorrem dentro desse mundo possam sem tanto documento como monumento simultaneamente, já que creio que nem sempre haja informações suficientemente concisas sobre como a transição histórica se dá dentro desse conceito, e onde os artefatos (terceiro item da lista de “cards históricos”), por mais que não contém um ponto de vista único, sejam símbolos do passado que precisam ser analisados para contar sobre o outro lado dessa moeda – ou sobre o mesmo, já que mais uma vez aquele que é o historiador terá o poder para assim o fazer.
Por fim, é notório que a Wizards of The Coast se preocupou com a idéia de uma construção imagética específica – principalmente nas Sagas – e que de uma forma ou de outra, ela se torna nosso historiador aqui e consegue nos convencer de que seus elementos ilustrativos são documentos (e são mesmo, longe de mim dizer “Fora Capashen!” – isto é, pelo menos até agora... Quem sabe o que virá nessa lore, não é mesmo?).
Espero que tenham gostado desta apresentação rasa, porém animada, de Jacques Le Goff e do Documento-Monumento. Há algum tempo não escrevia por aqui e espero poder por vezes falar de tópicos assim com vocês, já que esse estilo de análise muito me agrada, e poder trazê-la para o mundo de Magic: The Gathering é um enorme prazer.
Até mais!