No último artigo, havíamos comentado sobre o valor simbólico de cada tipo de carta que se diferencia das normalmente lançadas – as promos, foils, etc. – e percebemos que o termo “simbólico” parece bem presente no mundo do Magic: The Gathering.
Em seguida, deixei um questionamento sobre a concepção do mundo proposto pelo jogo, vinculada as cartas antigas de Magic, responsáveis por criar aquilo que dá vazão para a estrutura em questão. Você sabe do que se trata? A resposta é: o frame dessas cartas antigas eram mais do que apenas design. Mas do que especificamente estamos falando?
Quando você vê uma carta muito antiga, como o “Lightning Bolt” na esquerda, ainda não é possível identificar a ideia que estamos tentando formular aqui, mas em “Avenging Druid”, a questão fica mais clara. Vamos analisar juntos.
Primeiro, como sempre, temos o nome da carta e no lado oposto horizontal, seu custo. Até aí tudo bem. Abaixo sua ilustração, e abaixo dessa, no canto esquerdo, o texto “Summon Druid” (Invocar Druída). Aí temos nossa primeira concepção de mundo que Magic trabalha e que vamos destacar aqui. Nas cartas mais recentes, quando ela representa uma criatura, o termo “Criatura” vem especificado na carta, tão como seu tipo, subtipo, se é artefato, lendária, etc. Nas cartas antigas, como a do exemplo, a ideia era a que você estivesse lendo seu Grimório – e para quem talvez não saiba, Grimório é um livro de magia utilizado por feiticeiros. Percebemos isso não apenas no “Invocar”, mas também na caixa de texto da carta. Sua imagética é a de um papiro ou folha de pergaminho, produzida a partir da pele de animal, criando assim aquilo que, no cinema e na literatura, é chamado de Narrativa Diegética.
A diegese de uma mídia é aquela que dimensiona seu mundo, criando regras ficcionais ou estruturando convenções. Portanto, podemos dizer que esse frame da carta exemplificada aqui é uma tentativa de imergir o jogador dentro do mundo idealizado do jogo. Você tem 60 cartas no Grimório – 60 páginas de magia. Feitiços, que são mais lentos, precisam de concentração e só podem ser conjurados quando você estiver “livre” para isso – assim, a regra da pilha cria uma variação diegética dentro do jogo que interfere na narrativa. O mesmo vale para suas criaturas, onde você precisa tê-las disponíveis para dar ordens de ataque, ou não leva-las ao fronte de batalha se quiser que elas te defendam. Indo ainda mais longe, quando o conceito de “Summon” era utilizado nas cartas, a impressão é que se trata de um duelo próximo, que ocorre no momento onde você invoca as criaturas por magia, para que te defendam ou ataquem seu inimigo. Legal, né?
Conforme essas ideias iam surgindo – que cito, assim como em outros artigos, que podem ser conscientes ou inconscientes – alguns detalhes eram testados para que se verificasse sua aceitação e seu impacto do design.
A carta Anaconda possui um símbolo de espada em frente ao poder, e um escudo para a resistência. O conceito atravessa tanto o entendimento do jogo como um apetrecho (jogo de cartas colecionáveis), proporcionando uma imagem ilustrativa do que aqueles números representam, tão como a ideia de Grimório que havíamos falado. O mago aqui, visualiza como é a força da criatura que pretende invocar e o quanto ela pode suportar antes de ser “enterrada” (eita, esses termos antigos eram ótimos haha).
O próprio custo de mana, que independe do design antigo ou mais moderno, pois sempre está presente, a grosso modo e talvez até forçando um pouco, pode remeter a esta imersão. Quando um mago se especializa em um tipo de técnica, ele provavelmente tem mais dificuldade para se voltar as outras magias (outras cores), e, sendo assim, talvez tenha dificuldade de balancear muitas mágicas com bases diferentes (criar uma boa base de mana com muitas cores no deck é uma tarefa difícil), e quanto mais essencialmente voltadas as suas cores, mais mana essas mágicas exigem (custos múltiplos de uma mesma cor). São infinitas as possibilidades de compreender o jogo dentro de um universo mais próximo do Role Playing Game.
Apesar dessas vinculações mais voltadas à imagem estejam interligadas principalmente no visual antigo das cartas – não o primeiro visual, como o do Raio usado de exemplo, mas antes do de 8º edição – é notável essa característica em cartas como as de Visão do Futuro, ou mesmo nas Masterpieces.
Tarmogoyf possui estribeiras na imagem que remetem a visuais mais cleans (apesar de não o ser, necessariamente) e maquinários ficcionais do cinema, uma clara relação entre o nome da coleção e a pretensa de se ver o futuro – do jogo e do ponto de vista narrativo. O mesmo se dá nas masterpieces: seu destaque visual é relacionado a sua exclusividade como carta (como falamos no último artigo) mas também é diegético. A ideia de ser um artefato museológico/exposto, vinculado à sua imagem com ornamentações típicas de uma moldura de telas, elabora no olhar de quem vê esse patamar universalmente construído na narrativa e atinge os jogadores e apreciadores enquanto objeto. É uma forma muito inteligente de não deixar a peteca cair quando se muda o visual, e também de não ser categórico e ter que alterar todo o conjunto de cartas para sempre (como as mudanças da 8º edição).
Em outro nível, podemos também perceber que os textos terem sido modificados, palavras como “Summon” terem sido descartadas e outras coisinhas terem sido mostradas de uma nova forma, mais polida, como uma regra deve ser, acabam distanciando essa imersão tão específica como a de um mago em batalha. Entretanto, recentemente vimos uma mudança no texto de criar fichas que nos relaciona a diegese novamente.
A alteração no texto, assim como diversas outras que vimos no decorrer dos últimos anos (remover do jogo para exílio, jogar para conjurar, etc.) altera, sutilmente, o entendimento do jogo e sua visão pelo jogador, imergindo agora de forma mais próxima da literatura ou de uma permissão (“você pode “criar” x fichas utilizando tal magia”).
Falando disso tudo, o visual mais moderno das cartas – mas na verdade isso ocorre desde Dominaria ou antes – não remete mais a um Grimório, mas sim a uma série de acontecimentos dentro do enredo de cada bloco. É uma forma de imersão também, claro, mas, pessoalmente, creio que se distancie mais da diegese do que a ideia do livro de magias.
Por fim, ainda é plausível que essa diegese não seja realmente encarada por alguns jogadores, tão como pode nem ser realmente elaborada (e isso é comum em qualquer mídia – algumas estratégias são pensadas, outras, espontâneas), e não tenha nenhum respaldo oficial. Mas a liberdade de enxergar uma plataforma e conceber teorias como essa prova que sua imagem é capaz de moldar diversos discursos, o que é, de fato, um prêmio para desenvolvedores de narrativas em geral.
Bibliografia
BRANDT, Per Aage: "La diegesis", in Prada Oropeza Renato. Linguistica y literatura (Xalapa, México: Univ. Veracruzana, 1978).
JOFRE, Manuel Alcides: "Analisis textual de la diegesis", Alpha: Revista de Artes, Letras y Filosofia, 3 (1987).
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